Musical Gracias a la Vida comove público na estreia
Atualizado: 28 de out. de 2021
Banda Tupac Amaru e diretores do espetáculo
Estreou com grande brilho e muita comoção o espetáculo Gracias a la vida, nos palcos do auditório do excelente Complexo Cultural de Planaltina, na noite de 16 de outubro, e no Teatro Sesc Newton Rossi, da Ceilândia, na noite de 23 de outubro, ambos com lotação máxima permitida nestes tempos de pandemia. Os ingressos, disponibilizados na plataforma Sympla, esgotaram-se em poucas horas.
O musical, produzido pela Associação Artise de Arte Cultura e Acessibilidade, com fomento da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal, leva em conta os protocolos de segurança sanitária contra a Covid-19.
O Gracias a la vida é uma mescla da poesia de Pedro Tierra, que também é o roteirista, e tem como fio condutor a canção-ícone da chilena Violeta Parra, registrada no seu último e melhor disco, Las Ultimas Composiciones, de 1966, antes dela suicidar-se, um ano depois, aos 49.
Capa do disco de Violeta Parra
A força dos versos de Pedro e a abrangência sentimental da canção de Parra, somada a sua inquietação de defensora do folclore, cantora/compositora militante, artista plástica, bordadeira e a seus muitos e tumultuados amores, despertaram uma enorme comoção nas plateias, que aplaudiram o espetáculo de pé e ovacionaram os artistas e produtores.
E não é para menos, pois Gracias encontraria receptividade em qualquer palco do mundo, devido a abrangência de sua temática, baseada em clássicos musicais latino-americanos, que rodam o mundo, contextualizando a experiência dos anos de chumbo que assolaram o subcontinente, por décadas, cujo vírus ainda não foi extinto.
A direção segura do experiente Hugo Rodas que, em boa hora, volta à cena; a competência do maestro Alex Paz, na direção da banda Tupac Amaru; a visão oportuna do diretor-geral, Dorival Brandão; as vozes precisas dos atores Sheila Campos e Vinicius Borba, que parecem cortar nossas memórias, como aço de navalha; mais a segurança dos cantores Chico Nogueira e Dani Machado, sempre em estado de graça no palco, compõem um espetáculo esteticamente memorável que, mais do que nunca, nos leva a refletir sobre este estranho momento histórico e político.
Inúmeras opiniões superlativas, como “estou de alma lavada”, “não consegui segurar as lágrimas” e “quero assistir novamente”, se ouvia, após a apresentação. O ex-deputado Ricardo Vale foi um dos que disseram que o espetáculo, pela importância do tema que aborda, merece fazer carreira, país a fora.
Enquanto a cantora Amélia Pinheiro declarou que Gracias superou todas as expectativas, devido ao grau de profissionalismo da equipe de produção, músicos e atores.
Sergio Mathias, Alex Paz, Amélia Pinheiro, ex-deputado Ricardo Vale e Pedro Tierra
Após a apresentação em Planaltina, membros da equipe responderam algumas provocações deste repórter, na forma a seguir:
PEDRO TIERRA – ROTEIRISTA:
- A alma da América Latina está nos versos e no universo de Jose Martí ou na foto de Che Guevara, que percorre o mundo no peito dos jovens?
- Está em ambos. Che, cidadão do mundo; Martí, a encarnação da altivez, da capacidade de luta do povo cubano, da dignidade hispano-americana, latino-americana, encarnadas e nos inspirando a produzir, a criar espetáculos como este Gracias a la vida, que acabamos de oferecer aqui no Centro Cultural de Planaltina. É necessário que a gente recorra a estes símbolos que nos tocam e que nos representam para dizer ao mundo que a América Latina é um continente insubmisso e, assim, seguiremos até a independência e a liberdade total dos nossos povos.
- Então por que a América Latina não supera estes ciclos viciosos de caudilhos, que dia, menos dia, assumem o poder em muitos países?
- A América Latina precisa se libertar do imperialismo que nos impõe esses caudilhos. Esta lógica nos mostra que é preciso recorrer a todos os elementos simbólicos que nos afirmam como povos diferentes, de ricas culturas, e por um elemento que nos acompanha, desde a ocupação, há 500 anos, que é a luta pela liberdade e por independência.
- O Sr. vê a internet trabalhando contra a democracia, nesta conjuntura histórica que a América Latina vive?
- A internet pode ser um instrumento de opressão ou de libertação. Temos que ocupar nosso espaço dentro desta rede mundial. Isso é indispensável porque a internet não tem retorno. É preciso compreendê-la, decifrá-la, e nos prepararmos, cotidianamente, para utilizarmos este espaço e fazer com que nosso discurso, comprometido com a liberdade dos povos, possa alcançar as mentes e os corações.
Pedro Tierra - Poeta e Roteirista
ALEX PAZ – DIRETOR MUSICAL
- Como diretor musical, como O Sr. concebeu o trabalho para que alcançasse essa performance que contagiou o público?
- A noite foi sensacional, resultado de um trabalho delicado ao qual dediquei muitas noites, preparando os arranjos. Eu estava preocupado com o resultado, pois são músicas de raiz, a essência do folclore da América Latina. Ao mesmo tempo, tive que me esforçar para dar uma nova roupagem às músicas de muitas décadas atrás, ambientando-as aos nossos dias, com um toque moderno, a partir de um trio de metais, dois pianos, baixo acústico, flauta, violão e percussão.
Este é o maior musical que Brasília conhece em dez anos. Pela recepção do público, esta noite, creio que concebemos um espetáculo à altura da Capital Federal.
Alex Paz - Maestro e Diretor Musical
GABRIEL MAGNO – CHEFE DE GABIENTE DA DEPUATADA ARLETE SAMPAIO
- Um espetáculo desta complexidade, que trata de um tema histórico relevante, envolvendo uma grande logística e com calorosa receptividade do público, deveria ser apresentado a todo o DF, não acha?
- Certamente. O que a gente viu nesta estreia renovou nossas energias. A cultura e a arte são elementos de resistência fundamentais. Sobretudo, num governo que as elegeu como inimigas. Espetáculos como este renovam nossas energias para continuarmos a luta, lava nossa alma e nos dá ânimo para resistir.
O mandato da deputada Arlete Sampaio vai buscar parcerias para popularizar e ampliar as apresentações e a audiência deste espetáculo, que merece ser visto pelo maior número de pessoas possível, levando em consideração os cuidados com a pandemia.
Ampliar o número de apresentações será um ganho para a cidade e para o país. Nós nos colocamos à disposição para ampliar as apresentações, buscando parceiros, certamente para o ano que vem.
Gabriel Magno - Assessor Parlamentar
DORIVAL BRANDÃO – DIRETOR-GERAL
- Como diretor-geral, como o Sr. vê a importância deste espetáculo?
É um resgate político e estético. Quando a gente vê o processo de norte-americanização de nossa cultura, de forma intensa, que vem de muito tempo, com supressão de valores culturais, a partir do processo de colonização e das ditaduras, que quer subjugar o povo, a primeira vítima é a cultura, que é suprimida.
Através da afirmação da latinidade de nossas raízes, agente elaborou este espetáculo para contar que o povo latino-americano, apesar de sofrer muito, é um povo de garra, de luta e também de muita beleza cultural.
- A América Latina e o Brasil, politicamente, andam em círculos, parecem cachorro correndo atrás do rabo. Isto é um atavismo ou uma opção deliberada pelo atraso?
- Precisamos de um processo educacional profundo em que as pessoas se comprometam com o verdadeiro patriotismo. Só vamos conseguir superar o atraso quando as pessoas assumirem o patriotismo verdadeiro e não entregar nossas riquezas para outras nações, que já nos exploram há muito tempo. A América Latina só vai sair do círculo de ditaduras quando se unificar, através de suas similaridades culturais e políticas, para superar a influência imperialista maligna, que vem tentando invadi-la ao longo destes cem anos. Fora os outros quatrocentos de colonização.
- Um espetáculo desta dimensão política, cultural e histórica, deveria alcançar mais pessoas em todo o país, não?
- A primeira fase foi montar o espetáculo. Agora estamos aguardando oportunidades, mas dialogando com potenciais apoiadores, para garantir a circulação deste espetáculo, não só no DF, mas em outros estados. Já temos o apoio do deputado Paulo Pimenta, que prevê a apresentação de três espetáculos em Porto Alegre e três em Santa Maria.
Hugo Rodas - Diretor Artístico (esquerda) Dorival Brandão - Direção Geral (Direita)
Ficha Técnica:
Roteiro: Pedro Tierra Direção Artística: Hugo Rodas Direção Musical: Alex Paz Direção Geral: Dorival Brandão Intérpretes Dani Machado e Chico Nogueira Atores: Sheila Campos e Vinícius Borba Músicos: Carlos Cárdenas (saxofone) José Cabrera (piano), Leander Motta (percussão), Oswaldo Amorim (baixo acústico), Westonny Rodrigues (trompete), Filipe Silva (trombone), Simão Santos (Violão) e Walber da Matta (teclados).
Coordenação de Produção: Ângelo Macarius Produção Executiva: Janaína Montalvão Designer Gráfico: Renata Rangel Mobilização de Redes: Izabela Borelli Coordenação Administrativa: Alexandre Rangel Coordenação de Comunicação: Stéffanie Oliveira
UM COMENTÁRIO
Mandemos os malditos pro inferno
José Edmar Gomes
Gracias a la vida é um espetáculo musical ousado em seus propósitos de traduzir os anos de chumbo que abalaram a América Latina, a partir de meados do século XX, através de canções folclóricas engajadas, compostas por artistas que exaltavam a liberdade, mas acabaram mártires daquele tempo em que imperavam os fuzis e baionetas de caudilhos, generais e dedos-duros, sempre prontos para fuzilar a autodeterminação dos povos.
Tempos obscuros que teimam em não passar, ou simplesmente não passaram, uma vez que a fome, a miséria, as doenças e novos caudilhos rondam as nações latino-americanas, como almas penadas. As democracias conquistadas, por dolorosos aprendizados, com sangue e lágrimas, podem ruir a qualquer momento, sob aquele mesmo colonialismo que, ainda hoje, mantém “salvadores da pátria de plantão”.
O espetáculo é digno de si mesmo porque alcança seus propósitos, à medida que os textos poéticos/políticos de Pedro Tierra impulsionam os clássicos musicais, dimensionando o recorte de um universo que deixou profundas marcas no solo do subcontinente, que, apesar de tudo, vive um atavismo militaresco, personificado na nostalgia totalitarista, que chega às raias de governos constituídos se autodeterminarem fascistas, em pleno século XXI e há 32 anos da queda do muro de Berlim. A ignorância nunca encontrou solo tão fértil, como agora, principalmente no Brasil.
O subdesenvolvimento, perenizado por estes governos sedutores, mas incapazes de gestarem planos que nos levem ao futuro e nos devolvam a dignidade perdida, em décadas de desprezo pelas pessoas e pela natureza, enreda as nações num labirinto de ignorância e estupidez, de onde saem novos caudilhos e psicopatas, prontos para produzir a barbárie que esgarça o tecido social e a cultura dos povos.
O que já fomos ontem, hoje não somos mais. Mesmo que a tecnologia, com suas possibilidades (e armadilhas), chegue esplendorosa e oferte-nos inúmeras opções, a fome é um estado de dor permanente e não permite que se absorva ensinamentos dos livros, nem a grande sedução da internet, traduzida na posse de um celular, às vezes, roubado/furtado, depois vendido para comprar o gás pra cozinhar o osso de cada dia. Viver com fome é sempre trágico. E é esta a tragédia que cai sobre todos nós.
Por isso é preciso cantar. Então, cantemos Gracias a la vida e mandemos os malditos pro inferno, sem escala no purgatório. Afinal quem produziu horrores, como o episódio da decepação/esmagamento das mãos do jornalista, poeta e cantor libertário chileno, Victor Jarra, embaixador cultural do governo da Unidade Popular, de Allende, é capaz de todas as barbáries, para destruir a liberdade, incompatível a estes corações medievais.
Antes de morrer, porém, Victor Jara interpelou a Deus, com estes versos:
“É este o mundo que criaste, meu Deus? Para isto os teus sete dias de assombro e trabalho? Como me sai mal o canto quando tenho que cantar o espanto! Espanto como o que vivo. Como o que morro, espanto”.
E Pedro Tierra, poeta e roteirista do espetáculo, autor de Poemas do Povo da Noite, obra que concebeu durante seu infortúnio nos porões da ditadura, cantou assim este assombroso crime, patrocinado por um tal general Pinochet:
“...De tuas mãos se dirá um dia: geravam pássaros de sangue como as primaveras da lua.
Tuas mãos, tristes descendentes das canções araucanas, tuas mãos mortas, casa de canções decepadas, tuas mãos rotas, últimas filhas do vento...”
¡Gracias a la vida, libertad y democracia! ¡Abajo los estúpidos y destruidores de la cultura e la naturaleza!
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